América Latina-Israel e S. N. Eisenstadt: imagens reflexivas

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Dr. Eduardo Torres. Historiador, editor, educador popular e guia de turismo. Membro da Associação de Pesquisadores Israelenses de Judaísmo Latino-Americano. Professor do Programa de Mestrado Internacional em Educação Judaica. Doutorado pelo Departamento de História do Povo Judeu e Judaísmo Contemporâneo da Universidade Hebraica de Jerusalém.

Introdução

Ligado ao cânone clássico da sociologia comparativa, à abordagem estrutural-funcionalista e às bases de uma teoria sobre as “civilizações axiais” e as múltiplas modernidades, Shlomo Noah (S.N) Eisenstadt é reconhecido entre as disciplinas das Ciências Sociais pelo seu trabalho metódico como autor. A perspectiva histórica da sua trajetória e da sua obra acadêmica na sua relação com a América Latina percorre as mudanças ocorridas desde a Segunda Guerra Mundial até a atualidade.

No inverno de 2000, a revista Daedalus, da Academia Americana de Artes e Ciências, publicava o artigo “Multiple Modernities” no qual S.N. Eisenstadt submetia à discussão o processo de racionalização do mundo contemporâneo a partir da crítica das teorias da sociologia clássica sobre a modernização e a convergência das sociedades industriais (de Marx e Durkheim a Weber), e a contextualização das concepções de F. Fukuyama e S. P. Huntington acerca do fim da história e do choque de civilizações. Anos depois, Eisenstadt concretizou a sua análise sobre a modernidade e as transformações das sociedades do século XXI (Eisenstadt 2000, 2006, 2009).

A América Latina representa uma das áreas de estudo de Eisenstadt sobre os temas de etnicidade-cidadania, relações centro-periferia, estruturação de hierarquias sociais e sistemas políticos (Eisenstadt 2000). As suas referências à imigração, à modernização, à identidade nacional e à diáspora judaica visibilizam-se em projetos empreendidos por diversas instituições (UNESCO, IDS, CENDES) em países latino-americanos e pela Universidade Hebraica de Jerusalém (Centro Liwerant, Instituto Truman em Israel).

A relação do trabalho intelectual de Eisenstadt com a América Latina extravasa o âmbito de desenvolvimento das disciplinas das Ciências Sociais, e inscreve-se na sua intervenção em desenhos de políticas e estratégias na ordem social e nos sistemas educativos através de organismos e instituições (inter)nacionais e regionais: da sua participação na Conferência regional da UNESCO em Havana sobre a integração cultural de imigrantes (1956) e no Seminário sobre desenvolvimento econômico, secularização e evolução política em Buenos Aires (1963), à sua nomeação como investigador principal de projetos de desenvolvimento agrícola e modernização na região (1968-1970) e à sua dissertação no International Workshop “Contesting Liberal Citizenship in Latin America” na Universidade Hebraica de Jerusalém (2009).

Os artigos e livros de Eisenstadt, publicados em língua espanhola por editoras de Buenos Aires, Caracas e Madrid, possibilitaram uma maior presença e interação da sua obra dentro da rede de centros de ensino e bibliotecas públicas e universitárias da América Latina, Espanha e Portugal. A tradução e publicação em castelhano dos seus ensaios por José Díaz García na América Latina e José Luis Elizalde na Europa – que faz parte da história do pensamento sociológico da década de sessenta – merece uma futura edição crítica, dadas as sucessivas reescritas dos textos pelo autor ao longo do tempo.

No seu estudo sobre os sistemas políticos da América Espanhola, Eisenstadt não foi definitivo ao considerar as formações políticas dos Incas e dos Astecas como o restante dos Estados burocráticos centralizados históricos da Antiguidade. Este exemplo da complexidade do estudo da América Latina como subconjunto, mais do que o seu peso específico como região na obra, parece explicar sempre a sua cautela e a sua disposição de assumir em parte as críticas formuladas aos seus conceitos e categorias, mas sobretudo de entender também que provavelmente o próprio Eisenstadt era o mais experiente crítico de si mesmo.

A sua identificação do desenvolvimento e da modernização política, assim como o seu privilégio sociológico ao quadro teórico-analítico sincrônico (análise-comparação-narração histórica) e aos conteúdos culturais essencialistas, confrontaram-no com o jogo diacrônico de acontecimentos, processos e diferenças temporais do cânone historiográfico na América Latina. E as perguntas que a sua confrontação sugere estão relacionadas com as possibilidades de contribuir para o diálogo entre a história e a sociologia, e de distinguir e/ou descobrir novos significados da sua obra: 1. Que conceitos se destacam nas formulações teóricas comparativas de S.N. Eisenstadt sobre as Américas Latinas? e 2. Que perspectivas metodológicas abrem os seus estudos dos movimentos migratórios, o campo religioso e as identidades coletivas para entender o fenômeno transnacional em Israel?

Migração e integração dos imigrantes

O movimento de pessoas dentro e através de fronteiras tem sido uma constante da história da América Latina e de Israel, e não menos ainda da investigação sobre as suas consequências desde o século XX. São precisamente os movimentos migratórios e o campo da comunicação nos países de acolhimento, assim como nas comunidades e pessoas envolvidas: o migrante e a sua família, uma observação recorrente na obra de S.N. Eisenstadt. (Eisenstadt 1950, 1951a, 1954a).

O modelo do estudo de Eisenstadt das migrações extracontinentais e de países fronteiriços encontra paralelos comparativos distintos do que tradicionalmente assinalam os biógrafos sobre as influências que a sua labor pioneira recebe de M. Buber, M. Weber, E. Shils, T. Parson, R. Merton, e dos sociólogos e antropólogos britânicos da Escola de Economia de Londres: Morris Ginsberg, T.H. Marshall, R. Firth, E.E. Evans-Prichard, E. Leach e M. Gluckman (G. Delanty 2004, p.391).

O primeiro caso – de migrações modernas europeias (Reino Unido, Itália, Países Baixos, Espanha, Portugal e Alemanha) para regiões de fronteira: estudos sobre assimilação de populações marginais: imigrantes alemães no Brasil, história da América Latina, urbanização e futura imigração para a América Latina, fundamenta a sua comparação sobre os padrões de plantação com outros puramente agrícolas, e a presença de lideranças comunais marginais antes, durante e/ou a posteriori da II Guerra Mundial na Argentina, Brasil, Cuba, Chile, Colômbia, Venezuela, Costa Rica, República Dominicana.

O segundo, de grupos de imigrantes mexicanos e porto-riquenhos e as suas gerações nos Estados Unidos, posiciona as suas análises funcionalistas ecológicas e estruturais sobre minorias e gerações em contextos urbanos (Eisenstadt 1956). Tendência que desde os anos 50 orienta os destinos de migrantes fronteiriços (colombianos, nicaraguenses e guatemaltecos) para as zonas urbanas e fundamentalmente para a área de influência da cidade, onde se concentrava o desenvolvimento industrial e os serviços de países vizinhos.

Os estudos de S.N. Eisenstadt sobre população, migração, absorção, integração, impactos psicossociais, formação de comunidades judaicas e mudança social em Israel abriram novas perspectivas conceituais nas análises sobre a América Latina. Na conferência sobre a integração cultural dos migrantes (Havana, 1956), Eisenstadt reconhecia o problema de validar os indicadores da assimilação, cuja variabilidade espaço-temporal afetava a sua aplicabilidade em investigações comparativas. (S. Eisenstadt 1956, p.4).

No plano teórico e metodológico, a reformulação de Eisenstadt do modelo assimilacionista incluía considerar a assimilação como a ressocialização do imigrante e a institucionalização dos seus papéis-expectativas dentro dos limites e possibilidades estabelecidas pela sociedade recetora. (S. Eisenstadt 1956, p.4,5).

O quadro de agentes sociais (ONGs e instituições católicas internacionais) e do sistema político (oligarquias e ditaduras militares na maioria dos países latino-americanos: Venezuela, Colômbia, Cuba, República Dominicana, Chile vs Costa Rica, México, Brasil) sobrerrepresentados na Conferência de Havana, não só mostrou a Eisenstadt os limites de conceitos e modelos pragmáticos de adaptação, transformação e ajuste na investigação sobre políticas imigratórias, mas também a contraditória luta de interesses e disputas geocontinentais entre sistemas políticos, ideologias e polos de influência na América Latina. Particularmente entre a política vaticana e o seu modelo de neocristandade, o projeto secular do Estado nacional na América Latina e a potencial expansão protestante a partir das relações entre os governos latino-americanos e Washington.

História e política

As mudanças econômicas e políticas a nível mundial, a ideologização em âmbitos das relações sociais e as transformações epistemológicas na área de especialização sociológica, ampliaram as análises de S.N. Eisenstadt para a articulação da política como fenómeno macrossocial, e conectaram a interpretação do quadro de estudo das migrações e da comunicação com os processos civilizacionais (Eisenstadt 1963 c e 1968 a). O interesse de Eisenstadt em aplicar instrumentais e conceitos sociológicos à análise das sociedades históricas, e os estudos de história na perspectiva comparativa de sistemas políticos ou religiosos tem como unidade de análise privilegiada a América Latina. A sua sociedade colonial é a terceira área de estudo bibliográfico mais sustentada e citada na obra de Eisenstadt sobre o sistema político dos impérios burocráticos históricos.

A aplicação de uma perspectiva diacrônica – narrativa, comparação, análise – ao modelo sincrônico do seu estudo – desde a colonização dos monarcas espanhóis: 1520 até à independência: 1820 –, visualiza a relevância específica do motor econômico desta região, parteiro da história moderna.

Outro significado primordial provém das migrações que diferenciam o subconjunto das Américas Latinas dos sistemas políticos dos outros impérios que Eisenstadt analisa: um projeto de assentamento e colonização que cria uma nova sociedade da interação dos espanhóis e da população nativa – relevante e distintiva da conformação histórica e identidade da sociedade colonial em relação à história de Bizâncio e da antiga China.

Com base epistemológica nos seus ensaios sociológicos de análise comparada do desenvolvimento político e econômico de sociedades (pré)modernas e na intensa discussão gerada pelas ideias do professor Oscar Cornblit – baseadas na crítica às hipóteses de Hoselitz do desenvolvimento comparado de países latino-americanos e de Hagen sobre a mudança social – S.N. Eisenstadt sublinha a importância das elites inovadoras, da modernização, do crescimento e da diversidade influentes nas Ciências Sociais na América Latina.

A atenção de Eisenstadt à modernização na América Latina (Eisenstadt, 1963 a), e a sua comparação com Israel (S.N Eisenstadt 1966) pressupõem as suas abordagens sobre as categorias de estrutura social e imaginário na identidade coletiva israelita (Eisenstadt, 1967) e as suas influências na política. Particularmente de como se produz a alienação do projeto de assimilação dos imigrantes sobre os quadros ideológicos da vida judaica.

A perspetiva comparativa do desenvolvimento socioeconômico de Israel continha, segundo Eisenstadt, três indicadores relevantes de análise da sociedade, da identidade e do consenso político na América Latina: 1. Mudanças na estrutura da população urbana, 2. Antecedentes tradicionais dos novos imigrantes e 3. Motivações da migração.

No âmbito do seminário do CENDES na Venezuela, Eisenstadt centra o seu olhar na questão teórica e política de distinção entre mudança e transformação social, e define o lugar e o papel das novas elites e instituições modernizantes face à sua dependência conflituosa. (Eisenstadt, 1967 a) Este modelo para a investigação desloca o olhar do problema social dos grupos marginais e abre uma polêmica permanente com as correntes de pensamento historicista na América Latina.

Modernização e modernidades múltiplas.

Em 1967, o antropólogo D. Ribeiro classificava o esquema conceptual de Eisenstadt (1963) sobre o desenvolvimento desigual das sociedades dentro da orientação da sociologia acadêmica que incluía as nações de acordo com um modelo de transição de amplos setores de “classes médias” para um modelo “moderno” desprovido de controle sobre os fatos examinados. (D. Ribeiro 1992, p.18).

Eisenstadt reconhecia a perspectiva do conceito de dependência como ferramenta para explicar o lugar de tais sociedades dentro do sistema internacional; no entanto, considerava que a estrutura de fatores internos, de grupos e interesses locais dava conta do impacto dos fatores externos, da sua manipulação e das suas dinâmicas na institucionalidade de tais sociedades. (Eisenstadt, 1987, p.viii). Assim o exemplificava na sua edição da obra sobre ética protestante e modernização, onde incluiu o trabalho de E. Williams (1968) sobre o Chile e o Brasil (Eisenstadt, 1992).

A crítica de Eisenstadt às teorias da modernização partia da necessidade do cruzamento de processos históricos: estrutura de elites, debilidade do Estado e relações de clientelismo num quadro maior. (S.N. Eisenstadt 1987, p.IX) Em 1977, no workshop sobre modernização e desenvolvimento na América Latina, Eisenstadt enfatizava o valor simbólico e sistêmico da visão angelical-celestial ao relacionar: estrutura institucional e realidade política. Um ano depois, em plena efervescência dos debates da temática pós-colonial sobre a cultura, o poder e a dominação na América Latina e a crítica do eurocentrismo, Eisenstadt publica o seu trabalho sobre as grandes revoluções. (S. Giner 2008, p. 21)

Baseando-se em elementos territoriais, históricos e linguísticos, Eisenstadt distingue a relativa debilidade de critérios primordiais para definir identidades coletivas na América Latina, e os problemas para delimitar as suas fronteiras. A diferenciação etnocultural como uma categoria principal de estudo de processos civilizatórios (povos: testemunho, transplantado, novo: D. Ribeiro, 1967), é recriada na tipologia de Eisenstadt: 1. Indoamérica: índios, elites da mestiçagem cultural-religiosa. Raiz de passado indígena (Peru, México), 2. Euroamérica: imigrantes europeus brancos e católicos (Argentina, Uruguai), 3. Mestiça: população mais homogênea (Chile e Colômbia) e 4. Multirracial: amálgama de brancos, negros e indígenas, de cultura nova (Brasil, Cuba e áreas caribenhas). (Eisenstadt 2000)

O papel da motivação e diversidade dos grupos de imigrantes, e as dinâmicas criativas de construção de identidades coletivas, estarão, segundo Eisenstadt, na base da variedade de configurações locais, regionais e nacionais da América Latina. (Eisenstadt, 1992, p.595-99) Os critérios históricos e antropológicos de J.G. Merquior (1991) e R. Da Matta (1992) exemplificam as teses de Eisenstadt sobre as relativas mudanças de fronteiras e a possibilidade de reintegrar populações indígenas – para além do domínio do catolicismo e da identidade local – para um centro. (Eisenstadt 1992, p. 604) A par de reconhecer as grandes desigualdades na distribuição e no controle dos recursos (Eisenstadt 1993, p. 7)

Para o sociólogo A. Espina, a limitação de Eisenstadt reside em não destacar o impacto da colonização sobre o desenvolvimento – como pretensão das novas elites capitalistas emergentes da modernização, interessadas em abolir as estratégias de simples extração de rendas dos latifundiários. Outros questionamentos a respeito da modernização, das novas civilizações e identidades coletivas nem sempre estiveram atentos ao reexame e reescrita das suas ideias e à ausência de análises comparativas do continente (Eisenstadt 1987, 1993, 2002).

No seminário sobre cidadania na América Latina (2009), Eisenstadt aceitava a crítica à sua formulação inicial sobre as modernidades múltiplas e a ressonância essencialista e culturalista das suas propostas, sem ignorar que o que poderia ser um exagero levava em conta que as diferentes modernidades se definiam em termos de diferenças culturais – ou de um contínuo essencialista que não muda.

O fator religioso e os movimentos comunais e fundamentalistas.

Entre os processos cognitivos, ideológicos e culturais analisados por Eisenstadt e que tendem a produzir mudanças na distribuição do poder na sociedade, ocupa um lugar principal o que o autor denomina como expansão das religiões (Eisenstadt, 1991) e que remete aos cenários e atores da secularização e ao reavivamento religioso na América Latina (Martín 1990 e Stoll 1990).

Eisenstadt associa o novo papel do componente religioso com as tentativas das grandes religiões: judaísmo, cristianismo e islamismo por reformular a relação entre suas dimensões –transcendental, cosmológica e organizacional– e seus modos de interação com as instituições políticas e seculares. Particularmente de como se projetam seus programas educacionais e meios de comunicação pela legitimação na esfera pública. Para Eisenstadt esta mudança de lugar da religião e da identidade religiosa desde o final do século XX –outrora confinada à esfera privada ou secundária e enfraquecida nos marcos institucionais oficiais— constitui uma transformação autônoma e reflexiva de grupos marginalizados como estratégia de sobrevivência e/ou expressão de afirmação e universalidade.

O papel do fator religioso, na comparação entre o desenvolvimento histórico anglo-saxão da América do Norte e a hispânica da América do Sul, segundo Eisenstadt aparecia simplificado na evocação frequente de “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de M. Weber. Esta referência é subscrita por Eisenstadt com a relativa fraqueza que E. William (1968) encontrou em grupos protestantes do Chile e Brasil. (Eisenstadt, 1967 a, p. 17 e 18)

Eisenstadt se distancia da perspectiva primordialista (étnica) para explicar a estruturação de fronteiras e símbolos de centralidade do componente religioso nas sociedades latino-americanas. (S.N. Eisenstadt, 2002, p.52,54,58). Para o sociólogo espanhol A. Espina (2005), uma contribuição chave de Eisenstadt reside em analisar como a ruptura civilizatória deu expressão e sentimento religioso e identitário a uma mudança que já havia ocorrido no imaginário emocional e na percepção do indivíduo, transformados em força de mudança. A partir desta perspectiva se sustentam as relações que este estabelece entre os movimentos religiosos, as migrações e as identidades coletivas.

O foco de atenção de Eisenstadt: comunidades, redes e diásporas nos EUA, Europa e Ásia. (Eisenstadt 2009, p.23) possui características homologáveis na América Latina e Israel: liderança conservadora, posturas orientadas contra as contínuas mudanças e/ou a diversificação (familiar, social ou religiosa), fortes fronteiras, padrões anti-seculares, símbolos e rituais sectários, e visão particularista da exclusão.

No âmbito econômico –conectado com o declínio dos padrões de vida entre os setores desprovidos–, Eisenstadt adverte como a maior visibilidade das classes econômicas desfavorecidas se desloca de pobres, camponeses, lumpen urbanos para grupos de classe média –profissionais, graduados de universidades, outrora envolvidos em projetos modernizantes– relegados do acesso e participação nos novos enclaves políticos e transferidos para a mais baixa escala dos centros urbanos. (Eisenstadt 2009, p.14)

Esta situação recorrente no contexto latino-americano poderia explicar a sistemática inovação religiosa e reconhecimento de movimentos religiosos criados pelas classes médias brancas e ao mesmo tempo sua unidade com as matrizes étnicas africanas e americanas.

A tipificação que Eisenstadt faz dos atributos e significados do fator religioso na América Latina e a crítica acadêmica que recebeu, mostraram as limitadas ferramentas para descrever as identidades coletivas contemporâneas, e a necessidade de bases teóricas mais firmes com as quais definir o lugar e papel de seus componentes de modernidade.

Construção de identidades coletivas

As transformações das civilizações e do mundo religioso motivam a incursão comparativa da antropologia e da sociologia no campo das identidades coletivas (S.N Eisenstadt e B. Giesen, 1995). Especialmente o surgimento de novos movimentos religiosos, a reestruturação de fronteiras nacionais, as situações de crise e de conflitos, e a emergência de novas identidades locais e regionais.

Baseando-se nas contribuições tipológicas de M. Douglas (1982), F. Barth. (1969) e A. Van Ganep (1960), Eisenstadt sublinha os processos de construção social das fronteiras e a pronúncia das diferenças das identidades. Em teoria pelo menos, a situação de trânsito que descreve A van Ganep: separação, margem e admissão, permitirá a Eisenstadt distinguir os códigos simbólicos centrais da teoria de A.P. Cohen (1985) nas dimensões espaço temporais e reflexivas propostas por B. Giesen (1991).

Através da lógica da construção de J. Piaget (1970), a gênese evolucionária e a mediação da identidade enunciadas por C. Levi-Strauss (1971) Eisenstadt explica como as transferências de estruturas –do familiar ao desconhecido, do presente ao passado e ao futuro– e códigos culturais de distinção –entre um nós e um outros— nunca marginalizam completamente os significados originais de referência, como uma espécie de autoconsciência pessoal sobre seu lugar histórico de criar o mundo com o significado de imediatez de uma identidade dada e expandida. Baseado nesta premissa B.Giesen identifica como a identidade pessoal e coletiva, se expande ao entrar em contato com outras identidades e se comprimindo quando o tempo acelera. (B. Giesen, 2004)

Deste processo Eisenstadt sublinha a afiliação de grupos sociais particulares que atuam como construtores de uma identidade definida em uma situação particular a partir de códigos simbólicos específicos (Eisenstadt, 1995, p 77), referentes na proposta tipológica de E. Shills do arquétipo primordial de identidade. (Eisenstadt, 1995, p 78-83)

A comparação entre os componentes religiosos do judaísmo e do cristianismo em relação à atividade missionária diferencia a noção de primordialidade de Eisenstadt presente na construção da identidade judaica em Israel dos processos que ocorreram na América Latina. Para Eisenstadt a conexão entre fronteiras políticas e coletividades culturais por um lado, e fronteiras territoriais universalistas e civilizações pré-ordenadas por visões e autoridade transcendental por outro. Explica os modos de expressão local de novos núcleos de identidade cultural e social que surgem entre identidades subjugadas e reconstituídas em relação à redefinição da cidadania. A. Espina nota como a partir desta orientação cultural as fronteiras entre as distintas identidades podem ser impermeáveis e excludentes ou porosas, dialogantes e inclusivas. (A. Espina, 2005, p. 26)

A identificação de Eisenstadt desses arquétipos identitários permitiu a sistematização da expressão dessas identidades na sociedade (L. Roniger, 2008) afirmando a interação intergrupal e as lealdades sobre e acima de sentimentos nacionais. (J. Bokser Liwerant, 2013)

As categorias de estudo de Eisenstadt na pesquisa sobre identidades em Israel

Migração e ideologia, religião-etnicidade e modernidade são categorias fundamentais na obra de Eisenstadt que se prestam à investigação das fluidas fronteiras entre o povo judeu, Israel e identidades locais e regionais das chamadas Américas: índia, mestiça e multirracial. Ao reconhecimento de Eisenstadt de múltiplas identidades e o complexo propósito homogeneizador do estado-nação –de invisibilizar e sobre-representar com a mestiçagem por exemplo a grupos e minorias étnicas-, se acrescenta o papel da geografia local e regional: um trânsito de populações patagônicas, amazônicas e andinas, cuja composição interna e identidade as exclui de representações tão estritas como Euroamérica ou Indoamérica –tomadas por Eisenstadt–, sem ignorar a história de contatos permanentes com o global –migração econômica e missionarismo religioso mediante– nas fronteiras nacionais.

A presença dos judeus como minoria nas Américas implicou um processo de assimilação e o questionamento à existência de judeus sem judaísmo na sociedade majoritária. (R. P Amyot et al. 1996). Nesse mesmo cenário geográfico desenvolveu-se uma radicalização, principalmente religiosa, em direção ao judaísmo e a busca de uma identidade coletiva entre não judeus. Este complexo processo difere da forma e sobretudo dos conteúdos radicais, violência e instrumentalidade política alcançada pela visão religiosa ou étnica dos movimentos islamistas analisados por Eisenstadt. (Eisenstadt 2009, p.15)

Do ponto de vista ideológico e patrimonial, a criação de comunidades com fontes eletivas em direção ao judaísmo no cenário latino-americano, parece mais relacionada com processos históricos como a secularização, o relativo esgotamento do missionarismo religioso adventistas e messiânico judaico e as práticas espíritas, e a renovada importância de elaboradas imagens, rituais e simbologias judaicas como opções espirituais e/ou culturais de identificação entre as classes médias e intelectuais.

No entanto, a comparação do fator religioso na esfera pública e a reconstrução de identidades coletivas dentro da ordem global contemporânea na América Latina torna distinguível o retrato de Eisenstadt sobre as características de outras comunidades, redes e diásporas nos EUA, Europa e Ásia. (Eisenstadt, 2009, p.23). Na América Latina, os líderes religiosos (antigos missionários, pastores evangélicos, intelectuais) desses movimentos estabeleceram vínculos com redes transnacionais judaicas de legitimação e mobilizaram populações afetadas por fortes processos migratórios e divisões religiosas, étnicas ou culturais, em três zonas básicas de encontro da cultura ocidental com as identidades locais: 1. Metrópoles cosmopolitas (Bogotá, Cidade do México, Lima), 2. Zonas portuárias-fluviais (Cartagena, Iquitos, Veracruz), 3. Zonas de planalto (Cúcuta, Tachira, Cajamarca).

As dimensões da religião na abordagem de Eisenstadt –presente na antropologia e na sociologia da religião (Eisenstadt, 1992)— são metodologicamente adequadas ao estudo dos rituais de passagem ao judaísmo e à busca de uma definição judaica. Neste sentido, ancorar a resposta de investigação ao marco teórico explicativo transcendente proposto por Eisenstadt valoriza a tipologia de A. Van Ganep (1960) a respeito dos processos de construção social de fronteiras e pronúncia das diferentes identidades religiosas cuja legitimidade de base é situada por Eisenstadt no próprio valor das tradições como meio de identidade pessoal e coletiva.

A comparação entre os componentes religiosos do judaísmo na construção da identidade judaica de seus novos membros em Israel, mostra em chave o pano de fundo teórico de discussão sobre os conceitos de integração social (Eisenstadt 1970 b) e de assimilação (F. Peñalosa, 1972), de reconhecida data bibliográfica nos estudos acadêmicos israelenses, como nos discursos sociais, nas dinâmicas multiculturais e nas estratégias das políticas da identidade. Neste sentido, a obra acadêmica de S. N. Eisenstadt representa um inestimável instrumento para revisar algumas terminologias conceituais e construir um marco teórico de estudo desta temática na atualidade.

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  1. Este trabalho fez parte da preparação teórico-metodológica da minha tese de doutoramento: “Retorno ou entrada primordial no judaísmo? Os judeus novos latino-americanos e caribenhos em Israel: 1985-2015”. O artigo apareceu numa versão mais extensa na revista IBEROAMERICA GLOBAL, uma publicação acadêmica digital de estudantes da HUJI que, infelizmente, não se encontra disponível na rede.

  2. A seleção bibliográfica da lista de publicações em espanhol do professor Eisenstadt elaborada para este artigo pode ser encontrada, segundo o ano de publicação, na Revista mexicana de ciencias políticas y sociales, Vol.58 no.218 Cidade do México mai./ago. 2013 https://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0185-19182013000200008

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